O paganismo e o preconceito, I

Por Andreia Marques

Publicado originalmente em Heathen Brasil

Por esses dias, estava assistindo um episódio de Encontros Fatais (Fatal Encounters). Neste episódio, eles falavam de uma mulher que teria matado um homem, cruelmente, com treze facadas no peito.

Um caso de assassinado comum, certo? Psicopatia. Mas não era exatamente este o caso, nem esse o motivo pelo qual eu o trago à tona neste blog. Não foi o crime em si que me chamou a atenção, mas o que foi dito sobre a suposta assassina.

Angela Sanford teve uma vida marcada pelo abuso. Desde criança sofreu nas mãos do pai, que agredia a ela, à mãe e aos irmãos fisicamente. Na adolescência, encontrou o paganismo — mais especificamente, a wicca.

Quem conhece um pouco sobre wicca, sabe que é uma religião em que, geralmente, se prega a não-agressão. Ao contrário de religiões de cunho mais reconstrucionista, como o heathenismo, helenismo, kemetismo e outros “ismos”, a wicca não tem sacrifícios de sangue estabelecidos como base religiosa.

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Angela Sanford sendo levada a julgamento. Via Albuquerque Journal.

Angela Sanford matou Joel Leyva, de 50 anos, supostamente durante um rito de Beltane, com uma adaga. Ela teria conhecido sua vítima em um cassino e o convidado a participar do ritual. Os dois teriam se dirigido a um parque, onde Angela o assassinaria com treze facadas desferidas com uma adaga cerimonial.

Em seu celular, o número de telefone da vítima estaria sob o nome “Sacrifício”.

Angela, mesmo depois de sentenciada a 20 anos de prisão, continua alegando auto-defesa, dizendo que Joel teria tentado estuprá-la. Angela, à época com 30  anos, já fora estuprada antes,  e teria uma certa fobia de homens. Seus relacionamentos, quase sempre, foram abusivos, o que não é incomum em pessoas que sofrem abusos na infância. As evidências também demonstram que Joel Leyva não sabia a religião da vítima, nem teria sido convidado explicitamente para uma cerimônia. Muito do que se passou naquele dia é alvo de especulação, algo que o programa Encontros Fatais enfatiza, como costuma fazer, de forma bastante dramática. Mais ainda, pessoas da região duvidam que Angela fosse wiccana, de qualquer forma.

Teria ela realmente sacrificado sua vítima? Ou estaria dizendo a verdade?

Isso jamais saberemos. Certamente ela já foi condenada por tirar a vida de Joel, algo que nunca negou. Mas mais importante que isso, para nós, é a maneira como este crime foi reportado.

Uma rápida busca por “Angela Sanford crime” traz resultados de diversos jornais americanos, e a grande maioria tem algo em comum: a palavra “witch”, bruxa, como parte da manchete. Em vários outros, a palavra sacrifício também aparece. Muitas vezes, witch vem entre aspas, e/ou acompanhada de expressões como: “suposta”. Em outros, a palavra “wiccan” também aparece na manchete.

A maneira como este crime foi reportado traz de forma proeminente a suposta maneira cerimonial em que a morte aconteceu e, mais que isso, a condição de bruxa da autora.

Sensacionalismo jornalístico? Talvez. Mas é importante lembrar que impressões estabelecidas permanecem e perduram ao longo dos anos.

O site sensacionalista de notícias Daily Mail, da Inglaterra, certa vez publicou sobre o ensino de paganismo moderno em escolas da Cornualha. De acordo com o jornal, haveria uma diretriz governamental sugerindo que o ensino de paganismo moderno deveria vir lado a lado com o ensino de religiões abraâmicas. O que, em minha opinião pessoal, não seria de todo ruim. Eu, pessoalmente, acredito muito que a educação e o conhecimento são a melhor maneira de ensinar tolerância e respeito mútuo.

Obviamente, a reportagem era falsa, e nenhuma diretriz do conselho da Cornualha dizia isso. O próprio site já havia reportado algo similar, anteriormente, em 2009, sobre o condado de Lincolnshire, que dizia apenas que a inclusão de paganismo no currículo de estudos religiosos era possível. De fato, o programa de estudos recomenda que 60% do tempo seja dedicado ao cristianismo, os outros 40% sendo livres para qualquer outra religião, a critério das escolas. Este programa é referente ao ano de 2011, quando, supostamente, as escolas da Cornualha poderiam começar a ensinar paganismo. E embora o programa permita que tal coisa seja ensinada, fica especificado que deve ser a) informado previamente, b) marcado como tal, c) não conflitante com o programa dedicado ao cristianismo (que, inclusive, é a religião oficial da Grã-Bretanha, na forma da Igreja Anglicana).

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Mên-an-Tol, monumento neolítico, Cornualha. Via Wikicommons.

Interessantemente, a Grã-Bretanha é ponto de origem de pelo menos duas religiões pagãs (a wicca, moderna, e o druidismo, de certa forma reconstruída das crenças nativas celtas). Além, ela tem uma forte presença no paganismo germânico anglo-saxão. Como a maioria dos países, a religião nativa foi suplantada pelas religiões trazidas de fora, primariamente o cristianismo, trazido pelos romanos, e posteriormente àquelas que vieram com os imigrantes, como o budismo, o sikhismo, e o próprio islamismo.

Entretanto, o druidismo só foi reconhecido como religião para fins políticos e econômicos em 2010, quando passou a ser aceito pela Charity Commission inglesa.

A Cornualha, em si, possui diversos monumentos deixados por religiões pré-cristãs, como círculos de pedra, e possui inclusive um Museu de Bruxaria — estas religiões antigas e a bruxaria tornam-se parte integrante da economia da Cornualha, contribuindo para o turismo histórico do local.

E mesmo assim, na mesma Cornualha, em 2012, quando um cavalo apareceu morto e mutilado, houve quem acusasse os pagãos locais de matá-lo, criando o famoso “satanic panic”: pânico satânico, onde crimes e outras ocorrências suspeitas são associadas, correta ou incorretamente, a seitas satânicas e rituais pagãos.

O pânico satânico é bastante comum, e fonte de vários problemas para pagãos em particular, já que, no imaginário popular, existe pouca diferença entre um ritual satânico e um ritual pagão qualquer.

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Missa Negra, 1895. Ilustração para o livro Le Satanisme e La Magie, 1903. Via Wikicommons.

Muitas, se não todas, as acusações relacionadas a rituais satânicos (muitas vezes envolvendo abuso sexual e físico, quando não tortura e assassinato, de animais e crianças), são falsas. Mas a presença desse mito no imaginário popular continua, e isso afeta pessoas que — como eu e muitos leitores desse blog — são pagãos ou se interessam pelo paganismo, em suas vidas diárias.

Relacionamentos já foram quebrados por conta disso. Um relato de uma amiga, por exemplo, diz que a mãe de um ex-namorado (e também a mãe do atual) usava a condição dela de pagã e bruxa como argumento para separá-los: naturalmente, uma bruxa jamais poderia ser capaz de manter um bom relacionamento. Em outro relato, esta mesma amiga diz que sua mãe, quiroprata, já foi chamada de “curandeira” por pessoas de sua cidade, o que a obrigou a mudar-se de onde morava para escapar da perseguição. Observe que a relação dela com o ocultismo sequer existia; mas, uma vez associada a fama, ela persiste e perdura.

Isso não são suposições. Isso são casos reais.

Casos como os das crianças acusadas de bruxaria, na África, queimadas vivas e torturadas.

Neste último caso, o preconceito transcende a mera religião. É o imaginário perigoso, cruel e violento da bruxa, da magia, do pagão, que leva a um pânico moral. Que leva a conclusões que, claramente, causam a morte de pessoas. Principalmente quando se junta a outras formas de preconceito, como a misoginia. Uma simples busca por “mulher acusada de bruxaria” (como foi o caso de Angela Sanford), traz diversos casos em que mulheres foram mortas e, muitas vezes, queimadas, sob tal acusação.

No Brasil mesmo, uma mulher foi morta no Guarujá, São Paulo, depois de acusada na Internet de bruxaria e de fazer rituais satânicos com crianças. A vítima era inocente.

No Brasil, a mais comum forma de preconceito se perpetua contra aquelas de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Todos os praticantes destas religiões, praticamente, já passaram por situações constrangedoras, quando não de preconceito direto. Um amigo, umbandista, já teve um colar arrancado de seu pescoço por uma pessoa que gritava dizendo ser coisa do demônio.

Uma menina foi apedrejada no Rio de Janeiro ao sair de um ritual de candomblé, ação essa atribuída à intolerância religiosa.

Estas religiões tem seu preconceito marcado ainda mais pelo racismo inerente à sociedade. É bastante comum suas figuras serem “branqueadas”, como é o caso de Yemonjá, quando não abertamente demonizadas. Embora isso aconteça com outras religiões pagãs, como já dito, essa associação se torna mais visível nas religiões de matriz africana no Brasil, quando percebemos a relevância dela para a construção cultural brasileira, e o quão naturalizada é a discriminação a elas.

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Macumba. Originalmente, o termo se refere a um instrumento musical africano. Via Wikicommons.

O termo macumba é frequentemente usado de forma pejorativa para se referir às oferendas deixadas por praticantes desta religião. E, de fato, quem de nós nunca ouviu (e, algumas vezes, até repetiu) a expressão “chuta que é macumba”? Ora, que interessante, “chutar” uma oferenda religiosa. O mesmo certamente não seria dito de um santo católico, ou de um pastor (OK, talvez sobre alguns determinados tipos de pastores).

Isso quando estes mesmos filhos e filhas não são hostilizados dentro de suas próprias casas, por familiares, devido ao seu paganismo. Bastante comum quando a família é fundamentalista cristã (que, como a visão de mundo, é a mais comum, principalmente no Brasil). Ou expulsos de suas casas por comunidades que rejeitam sua religião.

A visão negativa do paganismo de uma maneira geral certamente é reforçada na mídia e na cultura popular. Quantos seriados, filmes e novelas não associam a imagem do pentagrama com o mal? Até mesmo com o Demônio, figura mais associada à mitologia cristã que à pagã…

Essa corrente da cultura popular se propaga no imaginário popular, dentro e fora, e muitos vezes pouco ou nada tem a ver com paganismo real. Em larga parte devido à ignorância que o paganismo (em suas diversas vertentes) sequer existe enquanto religião, ou como algo mais que apenas uma “distração” ou “fase”. Principalmente no Brasil, onde, embora a população pagã seja grande, muitas vezes continua no anonimato e, em relação à população geral, é quase nula. A maioria das religiões pagãs não são sequer reconhecidas como tal pelo governo brasileiro…

… o que pode ser positivo, de certa forma. Afinal, nós temos projetos de lei que visam coibir o sacrifício animal para fins religiosos, que são parte integrante de muitas religiões antigas, mas cujo alvo, claramente, são aquelas de matriz africana que ainda o fazem. Felizmente, este projeto caiu por terra a nível federal.

Observe que, embora o termo sacrifício animal possa parecer cruel, muitos desses animais são consumidos após seu sacrifício. O blót, principal ritual religioso do heathenismo, consiste de sacrifício animal, que depois é consumido em um grande banquete, sendo uma parte dedicada aos deuses (geralmente o sangue). Em nenhum momento se advoga a tortura ou crueldade para com os animais, e de fato, tal coisa afeta o ritual, quando não o invalida.

Não é, de forma geral, muito diferente da indústria alimentícia. Talvez seja até melhor, considerando as condições de criação que estes animais passam já que, geralmente, são bem criados e sacrificados de maneira rápida e o menos estressante possível, ao contrário do que acontece em muitos abatedouros, principalmente clandestinos.

Recentemente, o esquadrão anti-bombas foi chamado para investigar um pacote que, ao fim, descobriu-se ser uma oferenda religiosa. Um caso que pode parecer engraçado, até nos lembrarmos que houve mais de um caso de terreiros de umbanda queimados por, acredita-se, fundamentalistas religiosos.

Nós, heathens, temos o problema da apropriação de nossos símbolos e terminologias por grupos separatistas e vigilantistas, mas, felizmente, ainda longe do Brasil — pelo menos por enquanto. Em nossa frente, lidamos com pessoas que minam a própria religião, associando-a ao neonazismo, ao preconceito de raça, à própria intolerância religiosa (ironicamente, para uma minoria), e a outros assuntos do gênero.

Às vezes, o anonimato pode nos proteger mais que a legitimidade aos olhos da lei.

Mas, é sempre bom estar alerta. O mundo ao nosso redor nem sempre estará preparado para aceitar o que somos, quem somos, e como pensamos.

Saber lidar com isso é apenas um dos desafios pelo qual passamos e passaremos.


Imagem por Thomas Hawk, via Flickr.

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